11.8.09

(Conto): O PASSEIO IMPROVÁVEL


escrito por FRANCISCO GLAUTER.

Era o quinto dia de trabalho da semana. O quinto dia em que ele se moía por dentro, por ter pressa. Uma hora em atraso! Ele...o chefe da repartição! Moía-se por não poder parar no camelô e futricar as novidades pirateadas: sua ânsia pelas stars do mundo pornô! O que dava pra fazer naqueles dias de pressa contínua, habitual, era correr os olhos em soslaio e flagar uma loira numa das capas. Americana? Brasileira? Não. Tcheca. Sim. Tcheca. As tchecas são a grande sensação da indústria! Atrizes tchecas davam a ele a impressão da perfeição, o sentimento que só a idealização lhe trazia. Cultas? Sofisticadas? Ninfomaníacas! Deus! Vou a Praga. Não! Budapeste não! Praga. Quero ver Veronica Zemanova...e Monica. Sweetheart? Não. Certamente não é esse seu sobrenome de batismo. Sim, ela está morando nos Estados Unidos. Veronica Zemanova também. Entraram pro time da indústria....como Meirelles e Iñárritu. E eu? E minha busca? Quero é descobrir quem é a loira da capa pirateada. Será ela o objeto de meu desejo ao longo de tantos anos de contemplação da forma? Há trinta anos...exatos trinta anos procuro por uma virgem de boca entreaberta(*). A mesma busca incessante e doentia de Benjamim Zambraia, a personagem central do romance de Chico Buarque, igualmente obsessivo e interessado pelas coisas inexistentes. Chegou o sétimo dia. Atrasado. Na hora precisa, depois de botar o primeiro pé pra fora do 376 que me levava ao centro de Diadema, mirei a repartição ilícita, povoada de gente. Como de costume as calçadas da avenida Marginal eram um mar de gente a ir e a vir. O que tanto fazem essas pessoas?...pensei egoísta! O objeto de minha ansiedade tinha lugar numa pequena barraca, no passeio da margem oposta ao terminal de ônibus, periférico a um restaurante de nome mal escolhido. Cheguei, tomei praça, acotovelado. Uma jovenzinha indaga a respeito do “ao vivo” do Calcinha Preta. Um jovem aparentando quinze anos mal vividos queria o último Batman. Eu seguia minha intenção premeditada, quando o 376 ainda vagava pela avenida Cupecê. Foda-se! Um atraso a mais, um atraso a menos... Além do mais, sou o chefe daquela merda! Parei, acossado pelo relógio comprado há alguns dias, como vã tentativa de evitar os atrasos constantes. Avancei deseducadamente, quase empurrando uma senhora que a meu ver não deveria estar ali. Certamente haveriam afazeres de sobra na casa de uma mulher como aquela: cuidar dos netos, da provisão dos que sustentavam a casa e chegariam esfomeados tão logo a tarde caísse. Aquilo era um baixio, não lugar de uma senhora! Território de gente desocupada e obsessiva. Pra casa, minha senhora! Desculpei-me tão timidamente de minha deseducação para com ela que minha gentileza foi completamente ignorada. Ganhei meu lugar em volta da empresa. Baixei os olhos. Nada! Minha possível virgem de boca entreaberta tinha ido parar nas mãos de um qualquer, que não saberia valorizá-la como tal. Sim. Ela se foi. Eu triste de não ter jeito(**), ladeado pela senhora incauta e pela jovenzinha excitada, seguro nas mãos minha parte do espólio enquanto escuto um fado de Amália Rodrigues, vindo de minha inesgotável memória musical. O céu se tornava chumbo, “bonito pra chover” para alguns. Outros diriam: como é feio o céu desta cidade! Abandonando o inútil de minhas reflexões, ergo os olhos e pago ao pregoeiro pelo que me sobrou do desastre: o “dèbut” da Bruna Surfistinha.

Francisco Glauter

São Paulo/Outono-2009


(*)Chico Buarque

(**)Wilson Rodrigues


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