22.9.09

(Conto): AQUILO QUE NÃO SOMOS


WILLIAM NETO escreve a seguinte carta num papel de caderno solto e com uma caneta azul:
Não somos brancos nem orientais
Não somos um barco à vela a seguir
Nem carteiros para levar mensagens
Não somos ricos
Nem miseráveis
Não somos nem o bem nem o mal
Não somos negros
A beleza não está em nós
Nem a alegria
Somos a maioria da minoria
Não falamos e nem escrevemos corretamente
Não somos visíveis
Às vezes totalmente descartáveis
Às vezes totalmente inúteis
Não temos o amor
Ele raramente nos visita
Não temos a sabedoria de dar atenção a quem está do nosso lado
Somos solitários
Às vezes autodestrutivos
Drogados de drogas legais
Estas palavras são para dizer o que não somos
Ainda assim somos incompetentes e fugimos do título
Eles não acreditam que podemos fazer
Dizer que existem milhares como nós
Sem voz
Sem atitudes que realmente contam
Sem aquilo que sonhamos
Não somos doentes terminais
Mas temos uma doença sem cura
Às vezes somos piegas
Não fazemos sexo com quem gostamos
Apenas com prostitutas e garotos de programa
Não temos sorte
Não ganhamos nenhum jogo
E eles riem de nós
Falam pelas costas de nós
Temos vontade de terminar com tudo
Por meio de qualquer maneira indolor
Mas não somos corajosos
Não somos vítimas
Não somos testemunhas
Não somos aqueles que têm certeza
Não pertencemos a nenhum filme
Não somos os heróis
Nem mesmo os coadjuvantes
Somos talvez os figurantes no fim da rua, lá longe, que ninguém percebe
Ninguém nos apoia
Ninguém nos ouve
Não somos indivíduos diferentes
Não criamos nada
Somos artistas em reinventar
Não somos aqueles que especulam
Não somos aqueles que escrevem as letras para as músicas bacanas
Não falamos outras línguas
Não conhecemos outros países
Não somos calmos
Não temos um raciocínio linear
Já não sabemos de nada
Há dez anos, tudo poderia dar certo
Daqui a dez anos o que está dentro de nós será o mesmo e o que nos rodeia será pior
E por fim, não somos originais.
A esperança se foi pelo ralo no meu banho pela manhã
E é tarde demais para tudo...
Ps.: A resposta não está na cabeça daqueles que se julgam saber de tudo
Está naqueles que se identificam com uma só linha.
William Neto suicida-se deixando a carta sobre seu corpo, mas ao fim, uma leve brisa leva o papel até uma poça de água, a tinta da caneta se espalha e ninguém saberá quem foi William Neto. Absolutamente nada.


(Gilberto Caetano)

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