14.4.12

(Conto): DESMORTO


E o que é toda aquela classe boêmia em que GERSON COSTA vive? Ele mora em uma cobertura num bairro burguês, uma cobertura grande, com paredes de vidro, com mais de cinco metros de altura onde pode-se ver em 360o quase toda a cidade, uma enorme estante numa das sete paredes com os mais variados livros, entre clássicos e desconhecidos, quadrinhos fantásticos de artistas europeus e brasileiros. Aquele apartamento é o point boêmio da cidade. Gerson recebe grandes amigos, outros desconhecidos, pessoas de outros bairros, prostitutas e michês com classe, todos ali para conversar, recitar poesias, muito vinho, maconha, alguma coca e algum sexo casual. Nada de brigas, se aparece algum mal-entendido, logo é solucionado. Aquele apartamento é quase como uma igreja da contracultura, onde eles falam e são escutados. Onde a diversão quase nunca acaba sendo que o Sol é o maior inimigo, onde seus primeiros raios naquele apartamento de vidro dão sono. Dali surgiu grandes peças de teatro contemporâneas, livros ousados com linguagens rebuscadas, filmes surreais, filmes expressionistas, filmes dadaístas. É parada obrigatória intelectual da cidade. Gerson é feliz do seu jeito.

Numa destas grandes festas, ele acorda, com uma tremenda dor de cabeça, fazia tempo que não tinha uma ressaca desta. Logo percebe que está em sua sala com duas mulheres que não conhece e não se lembra da noite anterior. Acha estranho. As meninas estão com medo, olham para ele assustadas. Ele pensa que teve uma noite de prazer com elas.

- Essa noite deve ter sido realmente boa, não? Ei, eu falei com vocês. Garotas? Por que a gente não está no meu quarto?
- Você... você... está... está mor... morto. Você está morto, Gerson.
- Tudo bem.
- É verdade.
- Eu acredito, rsrsrs.
- Põe a mão sobre o seu peito ou tente contar a sua pulsação.
- Você morreu. Por isso todo mundo saiu correndo daqui. Você morreu! Todo mundo ficou assustado, chamaram o médico, ele veio, constatou que você estava morto e aí você levantou pedindo uma garrafa de vinho e todo mundo saiu correndo apavorado.
- Nós duas ficamos pra te falar que você está morto caso você levantasse novamente. É que você foi tão legal com a gente que a queríamos retribuir de alguma forma.
- Valeu – ele pensa um pouco e depois continua – Se estou morto como eu estou falando?
- Nem o médico ficou pra descobrir. Depois que você levantou e falou pela primeira vez, todo mundo saiu correndo pensando em todos os filmes de zumbis que existem. Vírus passando pela mordida. Espalhando pela cidade. Só nós duas ficamos.
- Por que eu fui legal com vocês.
- É.
- Vai ser difícil dormir essa noite.

Gerson cheira o próprio braço.

- Preciso de um banho.

Ele despede-se das garotas e toma seu banho. Não sente mesmo o seu coração, estando realmente morto. Mesmo assim o cheiro estranho continua. Mais um banho e o cheiro fica um pouco mais forte. Percebe que esse cheiro não é nada além do seu corpo entrando em estado de decomposição, ficando roxo, ficando duro. Nenhuma dor.  

O desmorto procura os amigos mais próximos e eles estão com muito medo. Nenhum o recebe. Andando pela rua, percebe que não precisa respirar mais. Tenta comer uma maça, apenas pelo prazer, um dos últimos, não consegue, vomita. Não sente mais tesão. Seu melhor amigo é o único que lhe abre a porta e tampa o nariz com algodão.

- É estranho não precisar mais fazer planos.
- Se você não tem mais futuro então pense no passado.
- Pra quê?
- Pra se despedir das pessoas que você gosta antes que suas pernas estejam podres demais para andar.
- Não sei.
- Você morreu ontem. Em três dias as bactérias irão acabar com o seu corpo. Em dez dias, terá tantas larvas andando dentro de você e fedendo tanto que talvez a prefeitura seja obrigada a te enterrar. Se isso não acontecer, em vinte dias os gases acumulados estouram, carne cremosa e a quantidade de insetos aumenta. Em quarenta ou cinquenta... 
- Chega. Talvez duas ou três pessoas eu gostaria de visitar.
- E por que não vai?
- Tenho medo de que elas não me queiram por perto.
- Não sei se você reparou, mas ninguém quer te ver por perto.

A primeira pessoa que Gerson visita foi a paixão de sua vida, uma mulher gentil que ele abandonou para viver uma paixão rápida e desinteressante. E naquele momento ele sente dor, em saber que ele não era o único que sofria, que naquela época seu egoísmo machucava muita gente, ele tocava o “foda-se os outros, eu estou bem, então...”, mas com ela foi diferente, ela mandou ele pastar para bem longe, Gerson ficou perdido. Caminhando em uma estrada com asfalto de vidro, depois paredes de vidro. Mesmo aquele amor do passado, que parecia ter esquecido e que está muito bem o fez relembrar. O fez menos egoísta por algumas horas.

Não que ela quer muito papo com o desmorto. Conversam no portão da casa dela.

- Vamos conversar aqui no portão, Gerson, porque eu não quero que você deixe minha casa fedendo.
- Tudo bem. 

Naquela hora, ele já era uma celebridade underground, apenas pergunta coisas triviais: “como você está?”, “como foi sua vida longe de mim?”. Ela responde:

- Perfeita.
- Eu fui muito canalha, né?
- Até que não. Eu esperava isso. Três semanas depois você tomou um chute na bunda. Ficou sozinho, amargurado. Mais até do que eu.
- É, né? 
- Quando você vai se enterrar?
- Amanhã. Cinco da tarde.
- Vai ter velório?
- Não. Obrigado por deixar eu te dizer adeus.

Ela fica calada. Sem sentir mais nada. 

A segunda pessoa que Gerson visita é seu pai. O homem que o abandonou quanto tinha 11 anos. Toda aquela ignorância que ele sempre teve, aquele jeito te tratar as pessoas mal, rude, rústico, de ser tudo do seu jeito. Tudo muito parecido com aquele homem. Eles se olham por alguns minutos e se separam sem falar nada. Cada um para um lado.
 
A terceira e última pessoa é o amigo de infância que roubou o melhor brinquedo dele quando criança, seu minigame e que bateu em Gerson na frente da escola, todos os alunos olhando.

- Naquele dia, na frente dos alunos das outras turmas, você me chamou de covarde, que não iria bater em mim porque eu era muito fraco. Lembra disso?
- Você pulou na minha garganta e deu dois socos na minha cara.
- Eu até pensei que iria te arrebentar, mas você me cobriu de porrada e só parou quando outros caras nos separaram. Só que aí quando eu levantei do chão, pensando que as pessoas iriam rir de mim porque apanhei, foi diferente, elas me olhavam com outros olhos porque eu enfrentei um cara que era o dobro do meu tamanho e bem mais forte.
- Éééé, Gerson, você devia me agradecer por ter apanhado naquele dia.
- Por isso eu vim.

Gerson sai sem dizer mais nada, além do sorriso em seu rosto.

Ele caminha lentamente até seu enterro. Ele não quer ninguém no cemitério, ninguém para chorar ou pedir para voltar, apesar das pessoas estarem muito assustadas para fazerem isso. Não naquele velório vivo. Não os artistas, os boêmios ou os vadios.         

Deita em seu caixão com extrema dificuldade, seu corpo está fraco e podre demais para qualquer coisa, ele sabe agora que talvez o seu amanhã não irá assistir. Mesmo agora ele existe sem existir completamente. Sozinho como no começo, sozinho como sempre esteve. Existe para apodrecer até o fim naquela cova escura. Pedindo para que sua consciência se vá. Não se arrependendo de nada do que vez.

Gerson Costa não descansa em paz.        


(Gilberto Caetano)


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Um comentário:

  1. o pontencial da tua ideia esta mal aproveitado precisamos conversar. porra da um curta do caralhu!!! já tenho a minha estoria...

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