6.10.09

(Conto): A TERRA DAS SOLUÇÕES FÁCEIS

ZULEICA DA SILVA é uma velha com o rosto muito mais envelhecido do que se você ver em seu RG. Ela veste roupas surradas, sujas e rasgadas – não poderiam ser diferentes. Ela caminha sete quarteirões do ponto de ônibus onde desce até o banco financeiro onde se senta todos os dias para pedir esmolas. Caminha com extrema dificuldade auxiliada por uma bengala.

Ela senta no seu ponto, estende o pratinho de plástico para que as pessoas joguem suas moedas e tira os panos que cobrem as suas pernas. Nas pernas existem grandes feridas, do tamanho da palma da mão de um adulto e em carne viva. Verdadeiramente repugnantes. Cheiram a podre. E essas feridas doem e muito. Zuleica fica com os olhos cheios de lágrimas a todo o momento. Dor, dor. Moscas nojentas pousam nas feridas. Quando começou a mendigar, ela às vezes cobria as pernas por causa das moscas mas quando o fazia as pessoas não se comoviam com seu sofrimento, as feridas tem que ser vistas e quando as pessoas a vêem elas jogam suas moedas cheias de pena e remorso e logo se esquecem de Zuleica depois de ultrapassarem duas esquinas.

O dia passa lentamente. Seu almoço é uma coxinha que um menino de rua lhe comprou. Sobram treze reais e quarenta e cinco centavos ao fim da tarde. Ela guarda seu dinheiro junto o pratinho de plástico, cobre as feridas nas pernas, levanta com dificuldade. Caminha de volta por sete quarteirões até o ponto de ônibus. Sua condução chega, ela entra, não paga, ninguém consegue ficar ao seu lado. O cheiro é insuportável, as feridas fermentam durante o dia ao Sol e no ônibus, o ar fica irrespirável. Zuleica tem a vontade de ter um diálogo qualquer com alguém, conversar sobre qualquer coisa, ela treina às vezes de frente ao espelho, esperando que no dia seguinte isso possa ocorrer. Falar de como foi seu dia, das coisas que viu. Ninguém fica perto, todos se afastam. Às vezes tem medo de que a única frase que saiba dizer é:

- Me ajude. Uma esmola, por favor.

E é realmente o que as pessoas escutam de sua voz. As únicas frases.

Ela chega a sua casa de madeira, afastado de tudo, quase no meio de uma mata. Coloca o dinheiro em um pote de plástico. Toma banho de água quente. Veste roupas velhas e limpas. Come seu jantar: arroz, feijão, ovo mexido, farinha e com uma pimentinha que arde pouco mas deixa uma sensação boa na boca. Quando satisfeita, lava a louça e pega uma pequena espátula em cima do armário.

Ela senta no sofá e com a espátula raspa as feridas. Todas. Uma a uma. Dor, dor. É muito para Zuleica mas ela não cede. Raspa todas para que continuem a ficar em carne viva.
Zuleica da Silva faz isso todas as noites.

Amanhã será outro mesmo dia.


(Gilberto Caetano)

Um comentário:

  1. Eu não entendi direito esse lance da Mordaz, será uma revista virtual? Tem algumas idéias literárias para colaborar com vocês. Abs e sucesso

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