10.10.15

(Conto): ASFIXIA

- Eu vou te contar uma coisa sobre a situação política dessa merda - diz Esdras. 
- Fala então, biduzão. 
- Você nunca me chamou de biduzão antes, amor. 
               
Ele beija a esposa na boca. Fernanda sorri rapidamente. 

-É o seguinte e é simples: só uma questão de tempo pra esquerda deixar de existir. Estão martelando os joelhos deles e uma hora cai. O país não precisa mudar. Se mudar quem se fode na história?
- A gente – Fernanda diz concordando com o marido.
- Sei não se o pior ainda está por vir - fala Jimi - intervenção pode ser uma possibilidade. 
- Estão até prendendo palhaços na rua - exclama chamando atenção para si Vera imponente e dona do apartamento onde os dois casais amigos estão jantando neste momento. 

Jantar sem muita firula, vinho, conversas e risos. Vera e Jimi estão casados há 10 anos. Altos e baixos. Hoje está tranquilo e controlado. Mesmo que não tentem mais ter filhos. Um filho na ponta do lápis é muita despesa. Aquilo que dizem que a única forma de enganar a morte é passando seu gene através da prole é balela. Jimi prefere do jeito que está. Vera não. 

- E você Fernanda, o que você acha? Não está meio salgada a comida? 
- Não. Pra mim está bom. Nunca comida uma comida rosa. O que é?  
- Adivinha. 
- Sei lá. 

Esdras coloca a colher com a comida rosa. Mastiga um pouco para sentir o gosto. Acha algo estranho sobre a gengiva. 

- Que foi? 
- Nada... Só... Espera...

Ele tira da boca um pelo. 

- Meu Deus! - grita Vera. 
- Não esquenta acontece. 
- Que vergonha. Nessa comida não tem nenhum bicho com pelo. 
- Não esquenta, Vera. Já foi. O que eu estava falando mesmo? 
- Sei lá.
- Eu perguntei o que é a comida e você pediu para adivinhar mas não consigo.
- Espera um pouco... – pede Esdras.  

Ele enfia novamente dois dedos na boca, entram mais desta vez e tira outro pelo de seis centímetros, preto e grosso. 

- O que está acontecendo, Vera?
- Eu não sei, Fernanda. Alguém mais encontrou alguma coisa dentro?
- Eu não – responde Jimi.  

Esdras engasga um pouco. 

- Bebê água, Esdras. 

Ele bebe. 

- Eu vou jogar a comida fora. 
- Acho que não é a comida não amor. 

Esdras tosse. Enfia três dedos na boca e tira mais pelos. Uma quantidade maior desta vez. 
Fernanda fica apavorada. Jimi e Vera ficam sem reação. 
Ele tosse, está engasgando. Fica vermelho. Fernanda enfia a mão na boca dele e tira mais pelos. 
Esdras engasga mesmo. Sufoca com o esôfago fechado. Ar nenhum entra. A garganta incha. Jimi corre para trás dele e o abraça com força para soltar o que está dentro dele. 

Esdras fica com a cabeça bem vermelha. Fernanda enfia novamente a mão na boca do marido e puxa o que está sufocando. Ela puxa até sair para fora da boca a cabeça de um roedor. 

Ela grita como num filme de Wes Craven e cai no chão se arrastando para a parede. 


O resto do corpo do bicho ainda está dentro da boca. 
Jimi puxa o bicho morto da boca do amigo e joga não chão. 
Vera está em estado de choque. 
Jimi paralisado. 
Esdras deitado no chão respirando com dificuldade. Deitado ao lado do roedor. 

- Já passou, já passou - diz Jimi. 

Fernanda depois de minutos respira fundo, alguém precisa ter a cabeça no lugar neste momento, pega o roedor molhado, gordo e morto e joga no lixo da cozinha. Volta para o marido, deita a cabeça dele em sua coxa e acaricia seus cabelos. 
Esdras finalmente consegue controlar a respiração. 

Vera depois que para de chorar, tosse, e da boca cai uma pena preta. 



(Gilberto Caetano)


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