Com um título como esse no caderno Cotidiano do jornal mais lido da cidade
de São Paulo não teria como chamar a atenção de Rebeca Linhares Bitencourt. Ela
tem dois filhos. Gustavo e Carolina. 9 e 7 respectivamente. Sua emprega que
trabalha com a família há dez anos é negra, periférica e pega lotação para ir
ao trabalho.
- Rute!
- Senhora? - ela responde do quarto das crianças.
- Vem aqui, Rute!
Rute entra.
- Olha o absurdo desta matéria aqui.
Rute passa o olho sobre as letras e as fotos.
- Mas quem está falando um negócio desse, madame?
- Você leu a matéria?
- Só passei o olho.
- Estão dizendo que existe um complô contra a classe média. Olha o absurdo.
- Eu não faço parte disso não.
- Olha só o título da matéria, Rute.
- Hum.
- Você sabe ler?
- Sei, madame.
- Então leia.
- "Mulher negra da periferia maltrata filhos da classe média".
- Absurdo!
- De onde essa mulher é?
- Lê a matéria, Rute.
Rute obedece.
- Éééé. Sei não.
- Sabe não o que, Rute?
- Éééé. Acho que essa se lascou.
- Vai tomar um processo foda! Vai presa, essa vagabunda.
- Vagabunda não, ela é trabalhadora, madame.
- Você me entendeu.
Rebeca respira fundo e solta a pergunta:
- Você maltrata meus filhos, Rute?
Rute respira fundo duas vezes e solta:
- Se eu não tivesse educação, madame, eu mandaria a senhora à merda agora mesmo, pegaria minhas coisas e iria embora sem pensar duas vezes. Mas como eu tenho educação vou responder da seguinte maneira: Senhora Rebeca, trabalho para a senhoras antes do Guto e da Carol nascerem. Cuido deles deste sempre. A senhora já viu eu fazendo alguma coisa contra a integridade física deles? Não. A senhora já escutou alguma reclamação deles? Não. Como eu poderia fazer algo contra eles, se amo teus filhos como se fossem meus. Só porque eu sou negra e a mulher da notícia também é negra e mora na periferia não quer dizer que somos todas iguais. Eu nunca torturaria ninguém da classe média para não crescerem babacas.
Rebeca engole seco a saliva. Desce difícil pela garganta.
- Estou esperando um pedido de desculpas, madame.
- Mil perdões, Rute. Eu sou uma idiota.
- Ainda bem que a senhora reconhece.
- Que eu sou uma idiota?
- Não, madame, o erro da pergunta.
Rebeca toma seu café rapidamente, levanta e abraça a empregada.
- Adoro quando você me chama de madame, parece que tenho mais dinheiro do que realmente tenho.
Ela beija Rute muito de leve no rosto, pega a bolsa, as chaves, diz:
- Dá um beijo nas crianças por mim.
E sai apressada para o escritório.
Rute deixa as crianças dormirem até tarde, limpa os banheiros e liga para a colega Lurdes.
- Alô, Lurdes?
- Oi, quem é?
- Você não viu ai no visor não?
- Estou sem óculos, mas pela voz e pela grossura é a Rute.
- Você leu o jornal hoje?
- Tenho tempo não.
- Descobriram o nosso esquema.
- Qual deles?
- Tortura e pressão sobre os menores.
- Ixi. E agora?
- A patroa me encostou no canto, me apertou, mas eu não disse nada.
- A minha é tapada. Ela não lê nada de manhã. Ela só lê a bíblia antes de dormir e entende tudo errado.
- Ótimo. Eu preciso que você ligue para algumas das meninas.
- Agora?
- Claro!
- Tá bom.
- Fala pra desmentir tudo.
- Tá bom.
- Eu vou lá ligar para as meninas do Rio.
- Certo.
- Segura aí é não faz nada com os pirralhos.
- Sério?
- Seríssimo.
- Aaaah. O Fabinho jogou papel no chão e chamou uma menininha no playground de galinha.
- Você planejou o que pra ele?
- Só um afogamento básico e uns choques pra ele aprender.
- Só alguns choques então.
- Tá certo. Ah... Quem foi pega?
- A Joana.
- Joana?
- A baixinha, gordinha, cabelo com luzes.
- Ah, coitada.
- Vou ver se consigo falar com ela pra dar um apoio moral.
- Tá bom. Beleza. Preciso ir pra preparar o choque naquela semente do mal.
Elas desligam simultaneamente os celulares.
Rute respira um pouco, pensa, senta na cadeira. Olha de relance para a porta e as duas crianças estão paradas olhando para a mulher negra da periferia que corrige crianças deselegantes.
- O que vocês estão fazendo acordados agora?
- Desculpa - diz Guto com o queixo tremendo.
- Sentem aí que eu vou preparar um café bem gostoso pra vocês.
Os irmãos correm para sentar rapidamente. A garota primeiro depois ele.
- Guto.
- Senhora?
- Você lembra o que teu pai te disse ontem?
Ele não responde.
- Lembra ou não lembra - Rute insiste - sobre a escola?
- Ele disse que eu tenho que catar todas as meninas da escola. Até passar a mão na bunda delas de vez enquanto que elas gostam.
- Você gosta, Carol?
- Não sei.
- Não. Você não gosta, Carol.
- Eu não gosto – diz a menininha.
- Dá um tapa na cara do teu irmão e diz pra ele respeitar as meninas, que o pai de vocês é um babaca.
[plaft]
- Nosso pai é um babaca. Você vai respeitar as meninas. Você me ouviu?
[plaft]
- Ouviu?
- Ouvi - Guto fala baixo.
- Ele ouviu, Rute.
- Boa menina. Você vai ser o que quando crescer?
- Secretária executiva igual minha mãe.
- Dá um tapa bem forte na cara da tua irmã, Guto.
O menino prepara a mão...
- Não – Carol fala alto – Sócia da empresa. Eu vou batalhar pra ser sócia de uma empresa.
O menino desarma a mão frustrado. Depois repensa seu sentimento turvo e fica alegre por não machucar a irmãzinha.
- Vocês sabem que eu amo vocês?
- Sim.
- Sim.
- Vem cá. Me abracem forte que eu vou fazer um café bem gostoso pra vocês.
(Gilberto Caetano)
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário