4.10.15

(Conto): MULHER NEGRA DA PERIFERIA MALTRATA FILHOS DA CLASSE MÉDIA

Com um título como esse no caderno Cotidiano do jornal mais lido da cidade de São Paulo não teria como chamar a atenção de Rebeca Linhares Bitencourt. Ela tem dois filhos. Gustavo e Carolina. 9 e 7 respectivamente. Sua emprega que trabalha com a família há dez anos é negra, periférica e pega lotação para ir ao trabalho. 

- Rute!
- Senhora? - ela responde do quarto das crianças. 
- Vem aqui, Rute! 

Rute entra. 

- Olha o absurdo desta matéria aqui. 

Rute passa o olho sobre as letras e as fotos. 

- Mas quem está falando um negócio desse, madame? 
- Você leu a matéria? 
- Só passei o olho. 
- Estão dizendo que existe um complô contra a classe média. Olha o absurdo. 
- Eu não faço parte disso não. 
- Olha só o título da matéria, Rute. 
- Hum. 
- Você sabe ler? 
- Sei, madame. 
- Então leia. 
- "Mulher negra da periferia maltrata filhos da classe média".
- Absurdo! 
- De onde essa mulher é? 
- Lê a matéria, Rute. 

Rute obedece. 

- Éééé. Sei não. 
- Sabe não o que, Rute? 
- Éééé. Acho que essa se lascou. 
- Vai tomar um processo foda! Vai presa, essa vagabunda. 
- Vagabunda não, ela é trabalhadora, madame. 
- Você me entendeu. 

Rebeca respira fundo e solta a pergunta: 

- Você maltrata meus filhos, Rute? 

Rute respira fundo duas vezes e solta: 

- Se eu não tivesse educação, madame, eu mandaria a senhora à merda agora mesmo, pegaria minhas coisas e iria embora sem pensar duas vezes. Mas como eu tenho educação vou responder da seguinte maneira: Senhora Rebeca, trabalho para a senhoras antes do Guto e da Carol nascerem. Cuido deles deste sempre. A senhora já viu eu fazendo alguma coisa contra a integridade física deles? Não. A senhora já escutou alguma reclamação deles? Não. Como eu poderia fazer algo contra eles, se amo teus filhos como se fossem meus. Só porque eu sou negra e a mulher da notícia também é negra e mora na periferia não quer dizer que somos todas iguais. Eu nunca torturaria ninguém da classe média para não crescerem babacas. 

Rebeca engole seco a saliva. Desce difícil pela garganta. 

- Estou esperando um pedido de desculpas, madame. 
- Mil perdões, Rute. Eu sou uma idiota. 
- Ainda bem que a senhora reconhece. 
- Que eu sou uma idiota? 
- Não, madame, o erro da pergunta. 

Rebeca toma seu café rapidamente, levanta e abraça a empregada. 

- Adoro quando você me chama de madame, parece que tenho mais dinheiro do que realmente tenho. 

Ela beija Rute muito de leve no rosto, pega a bolsa, as chaves, diz: 

- Dá um beijo nas crianças por mim. 

E sai apressada para o escritório. 

Rute deixa as crianças dormirem até tarde, limpa os banheiros e liga para a colega Lurdes. 

- Alô, Lurdes? 
- Oi, quem é? 
- Você não viu ai no visor não? 
- Estou sem óculos, mas pela voz e pela grossura é a Rute. 
- Você leu o jornal hoje? 
- Tenho tempo não. 
- Descobriram o nosso esquema. 
- Qual deles? 
- Tortura e pressão sobre os menores. 
- Ixi. E agora? 
- A patroa me encostou no canto, me apertou, mas eu não disse nada. 
- A minha é tapada. Ela não lê nada de manhã. Ela só lê a bíblia antes de dormir e entende tudo errado. 
- Ótimo. Eu preciso que você ligue para algumas das meninas. 
- Agora? 
- Claro! 
- Tá bom. 
- Fala pra desmentir tudo. 
- Tá bom. 
- Eu vou lá ligar para as meninas do Rio. 
- Certo. 
- Segura aí é não faz nada com os pirralhos. 
- Sério? 
- Seríssimo. 
- Aaaah. O Fabinho jogou papel no chão e chamou uma menininha no playground de galinha. 
- Você planejou o que pra ele? 
- Só um afogamento básico e uns choques pra ele aprender. 
- Só alguns choques então. 
- Tá certo. Ah... Quem foi pega? 
- A Joana. 
- Joana? 
- A baixinha, gordinha, cabelo com luzes. 
- Ah, coitada. 
- Vou ver se consigo falar com ela pra dar um apoio moral. 
- Tá bom. Beleza. Preciso ir pra preparar o choque naquela semente do mal. 

Elas desligam simultaneamente os celulares. 
Rute respira um pouco, pensa, senta na cadeira. Olha de relance para a porta e as duas crianças estão paradas olhando para a mulher negra da periferia que corrige crianças deselegantes. 

- O que vocês estão fazendo acordados agora? 
- Desculpa - diz Guto com o queixo tremendo. 
- Sentem aí que eu vou preparar um café bem gostoso pra vocês. 

Os irmãos correm para sentar rapidamente. A garota primeiro depois ele. 

- Guto. 
- Senhora? 
- Você lembra o que teu pai te disse ontem? 

Ele não responde. 

- Lembra ou não lembra - Rute insiste - sobre a escola? 
- Ele disse que eu tenho que catar todas as meninas da escola. Até passar a mão na bunda delas de vez enquanto que elas gostam. 
- Você gosta, Carol? 
- Não sei. 
- Não. Você não gosta, Carol. 
- Eu não gosto – diz a menininha.  
- Dá um tapa na cara do teu irmão e diz pra ele respeitar as meninas, que o pai de vocês é um babaca. 

[plaft]

- Nosso pai é um babaca. Você vai respeitar as meninas. Você me ouviu? 

[plaft]

- Ouviu? 
- Ouvi - Guto fala baixo. 
- Ele ouviu, Rute. 
- Boa menina. Você vai ser o que quando crescer? 
- Secretária executiva igual minha mãe. 
- Dá um tapa bem forte na cara da tua irmã, Guto. 

O menino prepara a mão... 

- Não – Carol fala alto – Sócia da empresa. Eu vou batalhar pra ser sócia de uma empresa.

O menino desarma a mão frustrado. Depois repensa seu sentimento turvo e fica alegre por não machucar a irmãzinha. 

- Vocês sabem que eu amo vocês? 
- Sim. 
- Sim. 
- Vem cá. Me abracem forte que eu vou fazer um café bem gostoso pra vocês. 




(Gilberto Caetano)



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