21.3.12

(Conto): CACAU


Ela tem praticamente todos os sonhos nas mãos. Todo o destino estranhamente controlado. Ou era para ser assim.

- Está esperando o que, menina?
- Não sei, vó.

Cacau vê a luz saindo dentre as nuvens do fundo do mar. Ela poderia ter sido qualquer coisa, nascer onde quisesse. Ela escolheu ser negra, nascer no Rio de Janeiro, na porta da Igreja da Candelária.

- Por que, minha neta?
- Porque precisava me apaixonar pela Lia novamente, vó.

Relembrando o passado do fundo da Baía da Guanabara dói no coração de Cacau. O destino foi filha da puta com ela. Aquela morena de cabelos pretos, encaracolados, de olhos castanhos não lembrou dela. Não a reconheceu.

- Pode ver isso, vó? O destino me sacaneou. Fez tudo que eu pedi menos que minha alma gêmea lembrasse de mim.

Cacau está acorrentada no fundo da Baía vendo a luz dentre as nuvens e seu choro não conforta, sua lágrima, ela some junto as outras que compõem o oceano.

Lia está em uma grande caixa, uma fábrica de prazeres onde os homens-sem-face passam levados por esteiras, gozando rapidamente e indo embora. Menos um. Cara-de-Joelho.

- O que eu faço aqui? Preferiria ser atacada por três ou quatro ou cinco animais comendo minha carne, girando minha espinha, sugando meu sangue como uma esponja, depois colocando minha pele na parede como troféu. Preferiria isso do que servindo homens-sem-face. Do que lembrar que perdi um amor porque não reconheci seu rosto. E não sei quem é. Talvez nunca saiba.

Mesmo procurando, Lia não encontrou a jovem Cacau. Esquecida no fundo da Baía, pensamentos e corações se apagam um dia. Duas amantes separadas pela memória. Dizem que anjos são homens simpáticos com asas. Mentira. São tartarugas marinhas. Dezenas delas soltam Cacau contra a vontade do destino.

- Obrigada, vó.

Na areia de uma praia a jovem negra encontra Lia nos braços do Cara-de-Joelho, um daqueles homens bombados, com cérebro grande, dinheiro que brota das narinas vindo diretamente de seus ancestrais e inveja vermelha.

- Por que você vai brigar por mim? – pergunta Lia.
- É a única coisa que eu sei fazer – Cacau responde sufocada.

A briga é sangrenta, desigual, desleal, com uma multidão de pessoas infelizes em volta torcendo. Pela primeira vez elas deixaram a homofobia trancada em casa com a babá.

- Vem sua macaca, pula no meu pescoço – diz Cara-de-Joelho, o único que trouxe o racismo para a praia junto com uma faca.

Cacau aceita sua coroa de espinhos e a coloca na cabeça do Vilãozinho Zona Sul da Idade Média junto com a faca atravessando o crânio. O ogro cai morto cantando uma música boba de verão que ninguém mais quer ouvir.

Lia coloca Cacau em seu colo, que está exausta, machucada e sem energias.

- Calma, você ainda é humana.
- Finalmente você lembrou de mim, Lia?
- Acho que não. Mas sussurre no meu ouvido porque você me ama tanto antes que eu desapareça.

A jovem negra apenas respira.

 - Meu nome é Cacau. Nós já pegamos a última saída, já chicoteamos o diabo e comemos a maçã e cuspimos sementes na boca dos homens, de todos os tolos. Por isso nos separaram. Para verem a pele descascando junto com a memória, junto com o amor e outras coisas do pacote.
- Continuo não tendo imagens suas na minha cabeça, mas quero aprender tudo de novo que eu esqueci com você.

E então, os lábios femininos se tocam intensamente e das faíscas daquele beijo gostoso, todos que torceram e agora assistem a cena bucolicamente doce, estarão protegidos do suor do fim do mundo. 


(Gilberto Caetano)


...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Veja também:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...